terça-feira, 19 de maio de 2020

O amor tem gosto de caju.



O amor tem gosto de caju. Caju recém colhido, lavado no rio, macio, doce, esponjoso, azedo, maduro, carnudo, verde, duro, saboroso, intragável, guardados na barra da camisa suada. Tem um pouco de fome no amor. Tem a fome real que consome as entranhas e a idéia dessa fome que pode ser saciada antes de sua chegada. Uma fome de ter fome, uma fome de ter e poder saciar essa fome. Tem esse gosto incerto, esperado, surpreendente que um monte de cajus colhidos ao acaso pode proporcionar. O amor acolhido na camisa durante a caminhada precisa ser saboreado. Sem cerimônia.

Nos encontramos duas vezes antes do momento em que me declarei a ela. Eu casado, pai, provedor, com um gosto pela liberdade que as pequenas escapadas me iludem de ter. Ela madura, contrastando um ar de leveza com a preocupação de quem observa um rosto conhecido ante a um momento de incertezas. Estávamos ali sentados um frente ao outro, no silêncio, no misto de constrangimento e tranqüilidade, na certeza da intimidade, na incerteza dessa intimidade.

Éramos voluntários em uma pesquisa sobre confiança e intimidade, realizada por uma faculdade de psicologia. Antes daquele momento, como voluntário havia passado por um questionário bastante invasivo sobre minha vida, uma entrevista individual realizada por um colegiado de três psicólogos e dois meses de sessões com um psicólogo discutindo minhas vivencias de confiança e intimidade. E agora na segunda etapa tudo que era esperado é que eu me sentasse frente a outro voluntario desconhecido, separados por uma mesa de madeira, e trocasse um segredo pela confiança que a intimidade dessa troca seria minha segurança de confidencialidade. Loucura.

Antes de vê-la entrando e se sentando a minha frente eu tinha a absoluta certeza de que mentiria. Contaria cada detalhe meticulosamente inventado de uma história para causar confiança na pessoa besta que sentaria a minha frente. Simularia cada expressão de sentimento, cada descontentamento e contentamento naquele alivio de sincera confiança e intimidade. A história era boa em cada pequeno falso detalhe. E obvio, escutaria com atenção cada palavra que me fosse entregue, confiada. Não porque me importasse, mas pela curiosidade simples a vida alheia.  Eu estava sentado a cinco minutos em uma cadeira confortável, frente a uma mesa vazia, numa sala de cor bege e com luz clara.    

Depois das regras explicadas ficamos a sós. Sem câmeras, escutas, mediadores, interferências, roteiros, sinais de tempo, distrações visuais, sons. Éramos eu e ela. Ela. Eu. Eu, minhas lembranças, minhas inseguranças, minhas certezas inacabadas, um eu adormecido que um eu desconhecido insistia em iluminar. Ficamos em silêncio por um tempo olhando um para o outro até que sem introdução ela me contou que na sua primeira experiência de toque foi abusada.

Seu corpo foi tocado lasciva e despretensiosamente sem que dela emanasse desejo, prazer. Isso ela guardava, não com amargura, mas com pesar das possibilidades que se perderam pra essa primeira experiência. Não falou de penetração, falou de mãos, apertos, fricção. Doeu, em mim doeu. Doeu porque tenho a certeza que já fiz o mesmo em alguém. Então doeu por ela, em mim doeu. Ouvi em silencio obsequioso. Engolia a seco cada palavra, e sem perceber meus olhos de encheram de lagrimas e eu pedi desculpas. Eu senti que devia um pedido de desculpas a ela. E saiu uma voz rouca, embargada, mas firme. Desculpa.

Não sei se era o que ela queria ouvir, desconfio que não. Mas tudo o que queria dizer não passou pela minha garganta, a confusão em minha mente não organizou as palavras. E a culpa em mim por outras em que toquei lasciva e despretensiosamente gritou, CULPADO, desculpe-se. O silencio voltou embrulhado no sorriso dela. A leveza no olhar dela, a cumplicidade daquele momento me pegou emocionalmente desprevenido. Joguei fora a mentira ensaiada e sorrir pra ela com a precipitação de um segredo escorrendo aos lábios.

Quando menino por volta dos quatorze anos fui a casa de campo de um amigo do colégio. Tudo era liberdade. Andar pela mata, comer frutas diretamente colhidas do pé, se banhar em água de rio, aprender a usar um rifle. Toda a liberdade cabia naqueles dias e nada faltava que uma caminhada colhendo cajus não suprisse. Ao final de uma tarde cheguei ao chuveiro externo próximo ao portão de entrada ao curral de vacas com meu amigo. Sentamos em um tronco de árvore para comer os cajus recém colhidos que carregava na barra da camisa. Eu vi uma mulher tomando banho de biquíni.

Ela me olhou sorrindo com um misto de ironia e curiosidade. Assentiu com a cabeça o prolongamento daquela confidencia, colocando os cotovelos na ponta da mesa cruzou os braços em minha direção. Era uma intimidade inusitada. Ela se colocou vulnerável para mim a poucos minutos, se permitiu ser julgada, exposta, mas agora se recolocava no lugar de mulher segura, ciente de si, do entorno e das incertezas. Prossegui fascinado com o que ela ainda despertava em mim, excitado com a possibilidade de compartilhar o que só às minhas lembranças permitir saber.

Era uma mulher jovem. Uma mulher. Seios grandes com bicos duros, coxas roliças, bunda grande. Era bonita de rosto, um sorriso aberto, acolhedor e olhos espertos. Nos conhecemos naquela manhã, na casa de meu amigo, ela me ofereceu ovos mexidos, eu aceitei, ah... ela estava vestida. No chuveiro ela continuou seu banho sem cerimônia. Meu amigo se enveredou a tirar leite das vacas, providencialmente inocente e verdadeiramente distraído. Ela passou xampu nos cabelos e eu hipnotizado com a espuma que escorria por seu corpo.

Cogitei parar o meu relato quando notei que ela tirou os olhos dos meus. Por um segundo me senti inseguro quanto a pertinência daquele momento para aquela confidencia. Ensaiei mais um pedido de desculpas. E quando voltei novamente a encará-la percebi que o bico de seus seios estavam duros e que ela sorriu pra mim, como que encantada pela descoberta da exibição da libido pelo seu corpo. Descruzou os braços lentamente, coloco-os sobre os braços da cadeira em que estava, cruzou as pernas educadamente e assentiu novamente com a cabeça que aquele segredo lhe fosse confiado.   

Enquanto o xampu escorria pelo corpo dela, todo o meu corpo ainda intocado de menino de sentiu ouriçado. Não conseguia tirar meus olhos dela. Ela me chamou de moleque fedorento e me convidou pra o chuveiro. A água estava refrescante. Estava a dois palmos dela quando espremeu seu cabelo em cima de mim, enchendo meu corpo de espuma. Esfreguei meu corpo inteiro tentando esconder minha ereção prematura. Assim que terminou de se enxaguar, abriu espaço para mim, tentei ser rápido, mas o calção não colaborava. Ela virou para mim e me repreendeu por não ter lavado adequadamente o rosto que ainda estava sujo.

Foi estranho vê-la ali parada me olhando contar tudo aquilo sem falar nada. A polidez de seu corpo contrastava com todo o desnudar de minha intimidade, com a intensidade com que meu corpo revivia aquelas lembranças, com o controle que eu me obrigava a ter sobre meu membro já prematuramente ereto. Seu olhar, seu sorriso esse me acompanhavam naquele delírio. A boca macia entreaberta segurando talvez uma língua úmida e sedutora delineando lentamente os lábios, e os olhos ávidos, percorrendo vez ou outra o caminho entre os meus e a linha da minha cintura, olhos curiosos talvez desejosos da descoberta do que a mesa entre nós escondia.

Ela ainda estava a apenas dois palmos de mim quando percebeu que embaixo daquele calção molhado o menino levemente curvado escondia um membro indiscretamente ereto. Não ouve vergonha, recriminação ou qualquer tentativa de supervalorizar aquilo. Sem qualquer cerimônia ela começou a ensaboar meu rosto com o mesmo sabonete que minutos antes vi ela deslizar pelo corpo após o xampu. Olhando nos meus olhos lavou minha testa, minhas orelhas, meu nariz, minha bochecha até deslizar suavemente o dedo nos meus lábios. Meu corpo extrapolou e eu não sufoquei o gemido. Uma mulher. Minha primeira experiência de toque foi com uma mulher linda, gostosa e misteriosa que bagunçou meu cabelo e saiu sorrindo enrolada em uma toalha.

Agora, homem aos 27 anos sentado em frente a essa mulher madura com uma leveza de espírito e curvas ainda desejáveis, me sinto um garoto de aproximadamente quatorze anos, desejoso de mais. Não, esse mais simplista, necessário, carnal, físico. Não esse mais de corpo, não é de toque, não é de gozo. Desejo mais dessa intimidade, desse homem que ela fez florescer no inicio da juventude, desse jovem-homem que se permitiu sentir a suavidade, a segurança e a lascividade daquela jovem-mulher. Desejo mais dessa confiança, cumplicidade que hoje reavivamos.

Sorrindo ela se inclinou para constatar minha ereção. Seus olhos demonstravam satisfação.  Agradeceu sinceramente pela escuta atenta, disse que foi um prazer rever nos meus olhos aquela jovem-mulher que um dia ela foi, mas que abriu espaço para a mulher-madura que ela quer ser. Ela agora tem duas filhas, um segundo marido, um aquário de dourados e ainda usa o mesmo xampu. Rimos. Não desviamos o olhar, não sabíamos como quebrar aquele desejo real que os dois sentiam. Prefiro acreditar que os dois sentiam.

Ela se levantou e antes de sair completamente de minha vida eu lhe perguntei se ela sabia que gosto tinha o amor. Ela disse como se estivesse a ler minha mente que o amor tem muitos gostos, muitas formas e muitos momentos, mas o desejo, passou a língua nos lábios e mordeu suavemente, o desejo garoto tem gosto de caju.

Gênero: Conto em primeira pessoa.

Autora: Pauliane Brito.

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